
Ubuntu pra você!
A linguagem como herança viva
Vovó diz que vai “punhá pra encher” quando coloca o celular na tomada. E, nesse simples gesto, enche muito mais que a bateria do aparelho: sua fala enche a casa de memória, de história, o tempo de verdade.
Ela tem 87 anos, a mente viva, os olhos atentos. Faz palavras cruzadas, romântica, acompanha novelas mexicanas como quem reza o terço — com devoção. Fala num português do campo, carregado de mundo. Às vezes um “traveis”, um “balangando” escapam sem cerimônia.
E eu escuto, porque ali ela é — é memória viva, de um idioma que carrega terra, tempo, ternura. O “punhá pra encher” é mais que uma expressão: é afeto em forma de som, é mundo rural costurado em vocábulos que escapam da norma para revelar o que é essencial.
Ela não fala “errado” — fala certo dentro do seu universo, daquele português ancestral e amoroso, onde as palavras nascem de onde os pés pisam. Isso é língua-mãe, não manual de gramática.
Ela é dicionário de uma época que não se imprime mais, mas se escuta — no café coado, na cadeira de balanço, nos olhos que já viram muito.
Em que há a graça de ter uma pessoa assim ao redor, entende o que digo.
E é aqui que entra a pergunta: O que é “falar certo”? Quem define isso?
📚 Escrever bem é ponte, não opressão
Sim, escrever bem, com clareza e correção, é uma forma de cuidado com quem nos lê. Uma forma de tornar a comunicação acessível, de mostrar domínio da linguagem como ferramenta. Em textos formais, jurídicos, acadêmicos — a correção gramatical não é opressão, é ponte.
Porém, quando essa mesma régua é usada para julgar o modo de falar do povo, da avó, do feirante, da criança do interior, ela se transforma em arma.
🌿 Gramaticalmente, o que é “ético” ao corrigir uma fala escrita?
Do ponto de vista da norma culta, a correção gramatical tem uma função: tornar o texto mais claro, compreensível e adequado ao contexto de uso — como uma redação, um artigo, um poema, uma petição, um livro.
Eticamente, porém, a correção deve servir à comunicação e à dignidade do falante/escritor, e nunca à humilhação, silenciamento ou desqualificação social.
🔸 Corrigir por corrigir, com arrogância ou pedantismo, não é ético.
🔸 Corrigir para ajudar alguém a ser melhor compreendido ou reconhecido em espaços onde a norma culta é esperada, pode ser um ato de cuidado.
🗣️ Raiz não se corrige, se respeita
O falar carrega alma, cultura, pertencimento. Não se corrige o que é raiz. O máximo que se pode — e se deve — fazer é ouvir, e, se possível, aprender.
O escrever, sim, pode ser orientado. Quando alguém nos pede ajuda para escrever melhor, isso é uma abertura — e ali entra a ética da orientação: clareza sem arrogância, correção sem dominação.
Ou seja: ética na correção é escuta e intenção.
🌾 E quanto à oralidade e à cultura? Como considerar o modo de falar das pessoas humildes?
A linguagem oral e cultural popular carrega histórias, afetos, resistências, modos de mundo. Chamar isso de “erro” é ignorar que a linguagem é viva, múltipla e profundamente situada.
A fala do povo é legítima. A fala da roça, da quebrada, da favela, do meu sertão 🌟 — é sabedoria em forma de voz.
Corrigir essas formas como se fossem inferiores é violência linguística.
💬 Como diria Paulo Freire:
Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos algo. Todos nós ignoramos algo. Por isso aprendemos sempre.”
E ainda:
Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”
Ou seja: o falar do povo não precisa ser corrigido, precisa ser ouvido. E, se for traduzido para uma escrita formal, que seja com respeito à alma de quem falou.
❌ Corrigir a fala de alguém pode ser um ato de violência
Sim, você leu certo: corrigir a forma como alguém se expressa, sem que essa pessoa tenha pedido, sem contexto de aprendizagem, sem escuta afetiva, pode se tornar uma forma de agressão simbólica.
Corrigir o “caipirês” de vovó é como tentar limpar a terra de um fruto com água sanitária — acaba matando o sabor que veio do chão.
Seria como tentar alisar as rugas da fala dela com ferro quente: mataria o que nela é beleza — basta o ouvir, sorrir, acolher o jeito dela dizer o mundo — isso é o mais ético que se pode ser.
A verdadeira ética da linguagem não está na regra, mas na escuta. Está em entender que a língua é viva, plural, ancestral. Que ela mora nos sotaques, nos ditados, nos jeitos. E que orientar alguém em sua escrita pode ser um gesto bonito — desde que venha com respeito, com permissão, com amor.
Corrigir pode ser um ato de cuidado.
Mas só se for feito com ternura, sem apagar a história do outro.
🌻 Em resumo: o que é ético?
Corrigir com amor e escuta, nunca com desprezo.
Distinguir entre contexto formal (onde a norma culta é esperada) e contexto cultural (onde a autenticidade é mais importante).
Valorizar a diversidade linguística como riqueza — e não como erro.
🌬️ E o “n” que não existe? (ou quase)
Alguém me perguntou esses dias: “Mas por que vocês falam muinto com N?”
A pergunta veio com tom de riso, mas eu ouvi como quem ouve um samba saindo da fala. Porque se tem uma coisa que o povo sabe fazer é facilitar caminho — inclusive na boca. A língua, aliás, é feita de atalhos criativos. E o “n” de muinto é só mais um deles.
A palavra muito vem do latim multum, que significava “numeroso”, “abundante”. A forma arcaica, ainda usada poeticamente, era “mui”. Com o tempo, passou a ser “muito”, e assim ficou na norma culta.
Mas quem anda por este Brasil ouve outra coisa: “muinto”.
Esse “n” que aparece na fala não está na escrita nem na etimologia. Ele surge por intuição fonética, por um movimento natural da fala que busca conforto e ritmo. Tecnicamente, é um fenômeno de nasalização + epêntese — a língua insere um som intermediário para suavizar a passagem entre sílabas:
mui-to → muĩ-to → muin-to
É como se a boca dissesse: “vou facilitar esse caminho”.
E funciona. Todo mundo entende. E é bonito também.
🌀 A intuição da fala: a língua como sentimento
Esse pequeno desvio de som revela algo maior: o instinto de dizer-se, mesmo sem dominar as regras. Um exemplo ainda mais revelador:
“Eu vinha te chamar” — querendo dizer “eu ia te chamar.”
Aqui, não é uma questão de som, mas de intuição de tempo e intenção. A pessoa sente que “vinha” carrega melhor o impulso do que queria expressar — e usa. A língua não precisa estar certa; precisa servir ao sentimento. E isso, muitas vezes, ela faz por si mesma.
A fala popular é sábia à sua maneira. Ela molda verbos, mistura tempos, cria palavras. Porque quem fala quer ser entendido, e às vezes inventa um jeito melhor de ser sentido.
🎓 Quem sabe mais, escuta mais
Quem domina a norma carrega uma responsabilidade ética. Não a de corrigir a qualquer custo, mas a de saber escutar com verdade. E além, se for tomar nota ou prestar apoio, que seja de modo íntegro e comunicar a exatidão da expressão do falante, ainda que o conteúdo tencione seus valores. O sagrado do Ser e sua dignidade, são invioláveis.
Corrigir alguém que fala “vinha” no lugar de “ia” pode ser mais agressivo do que útil.
A língua é feita para expressar. E às vezes, a pureza do gesto é mais importante que a pureza da gramática.
💠 A quem não sabe ler — e a nós, que esquecemos de olhar
Imagine alguém que acorda, um dia, no meio da cidade — e todos ao redor falam uma língua que ele não entende. Ele vê placas, rótulos, telas, avisos. Ouve piadas, alertas, canções. Tudo gira em torno da palavra — mas a palavra não o alcança.
Ele não é surdo, não é mudo, não é bicho. É gente.
Mas está do lado de fora da linguagem escrita.
E por isso, às vezes, se sente do lado de fora do mundo.
Quem nunca precisou ler o nome de um remédio, preencher um formulário, seguir uma instrução de trabalho… talvez não saiba o que é viver com um muro de letras entre si e o outro.
O analfabetismo não é apenas a ausência de letras, é o risco de perder o direito de participar da vida social.
⚔️ E quem sabe ler tem uma escolha ética: usar a palavra como poder ou como ponte
Quando alguém nos pede ajuda para escrever, não está pedindo só gramática — está pedindo inclusão. Está abrindo um caminho entre mundos.
E nós, que sabemos decifrar essa língua, precisamos saber também traduzir sua dignidade.
Ser leitor não é um título, é um chamado.
E esse chamado se ouve melhor quando se escuta primeiro quem ainda está tentando pronunciar seu lugar.
✨ O que esse “n” nos ensina? A língua como travessia
O “n” de muinto, o “vinha” no lugar de ia, o “punhá pra encher” — tudo isso nos ensina que a linguagem não é uma máquina de precisão, mas um ser vivo em travessia. Ela escapa, tropeça, dança.
E nesse caminho, nada é tão preciso quanto a intuição de quem fala com verdade.
🌻 Dizer certo não é calar o outro
Seja com a avó que diz “punhá pra encher”, com o jovem que fala “nóis vai”, com o povo que resiste falando do seu jeito — o mais precioso da linguagem é quando ela serve ao encontro, não ao julgamento.
Corrigir o outro sem amor é como empurrar alguém para fora da própria casa.
Respeitar sua fala é como sentar no alpendre com ele, tomar café e ouvir a vida passando pelas palavras.
🕊️ Que nossa língua sirva à dignidade — a última lição da escuta
Que o português que escrevemos seja instrumento de ponte, não de muro.
Que o modo de falar do povo seja acolhido como patrimônio, não como defeito.
Que saibamos orientar com cuidado — mas nunca corrigir o que é raiz, afeto e chão.
Como dizia Guimarães Rosa, que tanto amava a fala do sertão:
As pessoas não morrem, ficam encantadas.”
Assim também é a linguagem: não morre, só se encanta — na boca de quem fala com verdade.
— Fernando P. Souza, poeta da escuta e das palavras com chão
Xêro vó! 🫒