
Aláfia.
Que a paz que não se explica nos acompanhe.
Hoje escrevo sobre o que não se pode roubar:
a beleza de ser.
Certa vez, eu estava no meio de uma confusão de rua. Dessas que surgem do nada — um esbarrão, uma palavra atravessada, um mal-entendido que vira tempestade. Não dá pra saber como começa, nem como vai terminar. Só sei que, de repente, já estava cercado por gente exaltada, gritos, apontamentos, e uma energia densa que pairava no ar como nuvem de trovão.
No meio disso tudo, um rapaz — expressivo, com uma presença digna de palco — me olhou com uma intensidade que me congelou. Apontou, com um gesto quase teatral, e disse em alto e bom som:
“Tem o corpo de um deus grego, mas o gênio de…”
E então…
Parou tudo simplemente.
Talvez tenha sido interrompido. Talvez tenha se distraído com outro escândalo dois metros à esquerda. Talvez tenha esquecido o que ia dizer.
Mas a verdade é que eu também não ouvi o restante.
No instante em que ele disse “corpo de um deus grego”, meu pensamento se partiu ao meio. Fiquei ali, estático. Como quem ouve uma profecia pela metade. Um enigma em voz alta.
Um elogio disfarçado de insulto, ou um insulto travestido de revelação?
Fato é: nunca soube o fim da frase. Mas ela ficou em mim. Anos. Como tatuagem metafísica. Como uma linha aberta que me devolve, vez ou outra, ao espelho.
O Belo como Culpado
Sempre tive boa aparência. Nunca me considerei um Adônis — mas também não sou invisível. Me dou um 8, talvez, com humor. Um rosto harmonioso, corpo cuidado, presença que chama atenção. Mas acredite: isso nunca foi vantagem real. Na maioria das vezes, foi fardo.
Porque o belo incomoda. Incomoda mais quando é natural. Mais ainda quando vem acompanhado de alegria. Gera ciúmes, provoca sabotagens silenciosas, atrai pessoas que não querem te conhecer — apenas te possuir, te moldar, te usar.
Gente próxima me torceu. Gente querida, por vezes sem querer, minou minha espontaneidade com críticas veladas. É como se o brilho natural fosse uma provocação ao mundo — e então o mundo reage com punição. “Você já tem beleza, não pode ter alegria também.” “Você já é visto, não pode ser livre.” “Você já chegou, então que não fale alto.”
E é aí que a beleza vira sentença. Condenação silenciosa. Porque ninguém te protege da inveja disfarçada de piada. Ninguém te acolhe no cansaço de ter que ser forte, sempre.
A Estética como Julgamento
Mas afinal… o que é o belo?
A estética clássica, que vem lá de Platão e atravessa os séculos, diz que o belo é o reflexo do eterno. Que o belo é manifestação do bem, do verdadeiro e do sagrado. Não se trata de maquiagem nem simetria — mas de presença. De luz. De harmonia profunda entre essência e forma.
O problema é que esquecemos disso.
Hoje, o que se chama de belo é o que vende. O que agrada ao algoritmo. O que repete padrões. Mas o belo mesmo, aquele que comove, que tira o fôlego, que impõe silêncio — esse raramente cabe na vitrine.
A coragem é bela. A ternura é bela. A justiça é bela. O amor que persiste também.
Mas quem dá valor?
Quem exalta o silêncio de quem recua para não ferir? Quem reconhece a beleza de quem cuida da mãe doente, sem alarde? Quem enxerga dignidade no corpo ferido que ainda dança?
Não aprendemos a ver. Apenas a julgar.
Não Escolhi Ser Assim
Não escolhi ser assim.
Não escolhi meu corpo, minha cor, meu gênero, nem a latitude onde nasci. Não escolhi ser brasileiro. Nem nordestino. Mas amo mais o nordeste do que qualquer selo que me coloquem.
Não escolhi minha voz, nem o silêncio que me habita. Nem os olhos com os quais vejo o mundo.
Mas o mundo insiste em julgar o que eu não escolhi.
E mais: julga com regras que ele mesmo muda a todo instante.
Se sou belo, dizem que sou vaidoso. Se sou sensível, dizem que é fingimento. Se falo alto, é arrogância. Se fico quieto, é indiferença.
Mas por quê?
Por que aquilo que recebi como dádiva, natureza, acaso — precisa ser provado, justificado, defendido?
Por que tenho que me explicar por ser?
E Se o Outro Me É Assim?
Às vezes me pergunto:
e se tudo que é sagrado em mim só puder existir exatamente assim como sou?
Com este corpo, neste tempo, com este olhar que carrego — imperfeito, real, meu?
E o outro…
também não seria assim?
Com seu jeito lento de falar, sua dança improvisada no meio do dia, o sorriso torto que desarma qualquer lógica?
E se aquilo que o mundo mais tenta corrigir no outro for justamente o que o mundo mais precisa agora?
Talvez cada pessoa seja uma peça única, insubstituível, criada com o exato conjunto de dons, dores e desejos necessários a este tempo.
Irrepetível.
Sagrada.
Intransferível.
Não há como trocar esses traços.
A pessoa nasce em sua cultura, sua cor, sua origem, sua condição.
E isso não é falha — é fundação.
O sagrado mora ali, na pele que não se escolhe, no som da língua materna, nos gestos que vêm do avô.
O seu sagrado merece respeito — pelo Ser que é.
Pelo que pulsa, pelo que sustenta.
E se o que mais me cura for justamente aquilo que o mundo desprezou no outro?
E se a beleza que me atravessa for a que tentaram apagar?
A verdade é que só a humildade nos coloca em posição digna de reverência ao nosso irmão.
Só quem se curva diante da humanidade do outro é capaz de se levantar inteiro.
Ubuntu.
Eu sou porque nós somos.
E na presença do outro,
eu existo com mais verdade.
O Julgamento dos Fracos
A verdade é que julgar é fácil. Dá poder instantâneo. Satisfaz o ego. O julgamento, quase sempre, é a arma de quem teme ver o outro brilhar.
Julga-se o belo porque ele ameaça a normalidade. Julga-se o espontâneo porque ele quebra o roteiro. Julga-se o diferente porque ele é o lembrete de que há outras formas de viver.
E enquanto isso, a beleza se cala. Ou se deforma para caber.
Mas até quando?
O Belo Não Precisa de Permissão
A beleza verdadeira — aquela que pulsa no ser, que brota sem esforço — não precisa de permissão. Ela existe porque tem que existir. Ela é voz da natureza. Do espírito. Do tempo. Do mistério.
Não é o homem quem cria o belo. O homem apenas o reconhece — ou não.
E o mais trágico é que, quando não reconhece, tenta destruir.
Mas o belo resiste. Mesmo sob ataque. Mesmo negado. Ele floresce nos olhos de quem ainda sabe ver. De quem não precisa que tudo seja explicável.
Somos peças únicas
vestidas em pele e silêncio,
cantamos o que fomos dados
sem precisar pedir licença.
Na dança do outro encontro
o que habita meu ventre,
porque sagrado é nele, é em nós,
onde a dignidade se faz ponte.
Conclusão: E o Fim da Frase?
A frase nunca terminou.
“Tem o corpo de um deus grego, mas o gênio de…”
Talvez seja melhor assim.
Porque essa frase, do jeito que ficou, virou espelho. Virou pergunta. Virou espaço para imaginar, rir, questionar e escrever tudo isso.
Talvez a beleza esteja exatamente nisso: no que não se completa. No que não se resolve. No que apenas é.
Como você. Como eu. Como todo ser humano, inteiro em suas contradições.
E você?
Já foi julgado por algo que não escolheu?
Já sentiu que sua alegria era proibida?
Já teve que esconder sua beleza, seu dom, sua verdade — só pra caber?
Conta aqui. Vamos conversar.
Às vezes, só de dizer, o fardo já fica mais leve.
Salve!